terça-feira, 31 de julho de 2007

O inexorável



Essa noite foi engraçada, deitei bem agasalhada na minha cama, um soninho bom; mas sonhei com meu dente quebrando, estava bem horrível mesmo..., não sei se porque tenho dentista marcado para hoje ou se devo acreditar no dito popular, sonhar com dente é morte...esses ditos populares!! rs
Quando acordei hoje estava tudo absolutamente no mesmo lugar, nadinha diferente, fiquei um pouco mais na cama, não senti fome nessa manhã (isso sim, é estranho demais, sempre como bastante no café da manhã), liguei a TV e fiquei assistindo ao jornal da manhã; o telefone tocou quatro vezes, era a mesma pessoa, mas acredito que estava de sacanagem com a minha cara, pois falei várias vezes: Alô, alô, alô...e nada, a pessoa parecia nem estar me ouvindo, eu já tinha pensado em trocar a droga do aparelho telefônico, faz tempo que está ruim, mas hoje foi a gota d'água; decidi, por conta do problema do telefone, ir ao shopping perto de casa, assim compro um aparelho novinho em folha e não preciso mais gritar ao telefone. Fui tomar banho e como estava bastante frio coloquei na água quente, o que embaça todo o espelho, e na verdade detesto isso, pois tenho que passar a toalha para limpar e olhar a minha cara feia tentando arrumar o cabelo, de qualquer maneira, sempre dá para ver alguma coisa com o espelho embaçado, mas hoje achei bem estranho, estava embaçado demais e eu fiquei com preguiça de passar a toalha, tive quase a certeza de não estar me vendo, dei até a sensação de Saramago às avessas, no livro dele ninguém morre, e no meu estou absolutamente morta; palhaçada minha, sem relevância, por favor!
Fui ao shopping, direto à loja de telefones, ninguém olhava na minha cara, sempre falo que o carioca não atende bem nas lojas ou em repartições públicas, dá a sensação que eles pensam que estão te fazendo um grande favor por você está comprando ali, ou seja, fiquei tão indignada pela falta de atenção que desisti da compra do aparelho telefônico, lembrei também que tinha ganhado um de Natal, mas que estava esquecido em algum lugar do armário, vou usar esse, assim economizo; não posso esquecer o meu dentista hoje, tenho que telefonar para o consultório e confirmar. O que também estava estranho hoje, principalmente nessa minha saída, é que tinha um cara me seguindo, desde minha saída de casa, mas só tive certeza quando ele começou a entrar nas mesmas lojas que eu, o pior que nem tinha cara de maluco, era como dizia minha avó, um pão; a questão é que essa perseguição estava me incomodando, apesar da beleza dele, ninguém gosta de ser seguida, quem ver cara não ver coração, sei lá o que pretendia essa criatura estranha. Decidi ir até essa pessoa, ele já estava rindo, decidi comigo mesmo... é maluco, só pode ser, me segue, é lindo e está rindo com a minha aproximação, ou seja, é maluco. Fui direto ao ponto...
- Gostaria de saber porque está me seguindo à horas?
- Estou apenas observando seu comportamento depois de morta.
- Você é maluco? Que morta o quê, que coisa mais absurda, se você continuar seguindo-me, terei que chamar o segurança do shopping.
O incrível, é que ele começou a citar inclusive a minhas quatro tentativas de atender ao telefone, e nesse momento sei que estava sozinha; citou também a vendedora da loja de telefones, e foi falando...; posso dizer, ele era bastante convincente, mas não para me fazer acreditar que estava mortinha da Silva, era absurdo, ridículo, ninguém morre assim, despreparada, sem um aviso prévio, ainda mais, tenho dentista hoje, não posso faltar ao dentista, faz tempo que tenho um canal para fazer, demorei para conseguir marcar essa consulta, que coisa mais sem sentindo...morrer assim, só um maluco como esses para me dizer tal asneira.
Morrer...hum, até parece, Deus não seria tão brincalhão, além do mais, eu ainda nem escrevi um livro, coisas que estão na ordem natural de todo homem: plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro; ora bolas, essa idéia de morrer nem ao menos passou pela minha cabeça pelos próximos...hum, 200 anos! Além do mais acabei de começar uma dieta e preciso perder pelo menos 5 kg, morrer acima do peso seria pouco glamouroso, tô fora, sem chance! Tenho certeza que o tal cara da perseguição é maluco, Deus não seria tão macabro comigo agora...ainda nem fiz a minha prova de mestrado, além do mais combinei com uma amiga que ela morria primeiro, e não estou disposta a perder uma aposta tão fácil assim, de maneira nenhum, peraí colega da lista de mortos, isso é ridículo mesmo, olhando com lógica, é simplesmente absurdo, além do que o dia está absolutamente normal hoje, inclusive estou me achando mais gorda, mortos são normalmente magros e pálidos, nesse sentido, tenho certeza: estou perturbadamente viva!
Depois desse embate de pensamentos e conversa mole com o estranho esquisito observador de mortos, fui para casa, decidi instalar o telefone novo ou velho, que estava no armário e confirmar com meu dentista, liguei e a secretária atendeu, dessa vez eram duas loucas falando alô, alô, alô..., eu sabia que este telefone estava uma M mesmo, devia ter comprado um novo, se não fosse aquela vendedora e a minha mania de economizar, teria usado o telefone tranquilamente para confirmar o dentista, de qualquer maneira, como já estava marcado vou mesmo assim. Novamente o telefone toca, já sei que não vou conseguir falar bem, a pessoa não vai me escutar por causa desse telefone horroroso, talvez seja até da linha telefônica o tal problema de comunicação, ou melhor, da falta de comunicação. Saí para ir ao dentista, infelizmente quando cheguei lá, um recado estava afixado na porta: "Viemos por meio desta avisar do falecimento do Dr. Joaquim Gouveia, sem mais". Fiquei literalmente petrificada, meu dentista acabava de falecer, pelo visto o meu dia estava girando em torno desse tema tal pouco agradável aos ouvidos. Decidi assim, voltar para casa, não tinha mais nada para fazer hoje, fora o dentista que certamente não poderia mais fazer meu canal, nem hoje e nem nunca mais, afinal tinha batido a caçoleta como dizem por aí, ido para o mundo dos pés juntos, enfim, morreu.
Chegando ao meu prédio vi que havia uma grande movimentação, ambulância e várias pessoas, fiquei preocupada, pois tinha uma velhinha no andar abaixo do meu que era insuportavelmente insuportável, mas não queria que ela estivesse mal, apesar de sempre bater com a vassoura no próprio teto para que eu pare com o barulho, que mesmo que seja um pulinho meu, para ela é uma festa rave das mais agitadas, enfim, fui subindo as escadas e percebi que não era no andar da velha, era no meu andar, e a primeira cara que eu encontro? O maluco do shopping parado bem no começo da escada, aquilo me gelou na hora, ele riu e disse: eu estava tentando avisá-la!
Empurrei o homem e entrei correndo no meu apartamento, minha irmã estava chorando muito e mais umas amigas, eu não entendia nada, pois ninguém parecia me ver, eu falava, gesticulava e as pessoas, pareciam não me notarem, aquilo estava me causando angústia, dentro do apartamento também tinham médicos e a polícia, era tudo estranho demais. Então aquela figura diferente e estranha vem em minha direção e me diz:
- Eles não podem te ouvir, você está morta!
- Saia da minha frente, não me faça perder a cabeça, isso é um absurdo sem tamanho.
- Entre no quarto.
- Farei isso imediatamente e vou te provar que isso é uma empáfia, uma brincadeira de mau gosto.
Quando corri para o quarto, o choque foi terrível, eu estava ali, mas ao mesmo tempo estava deitada na minha cama, imóvel, fria e morta. Corri em minha direção, e me sacudia, mandando que eu acordasse, que levantasse, era a coisa mais surreal ou experiência de pós-morte que eu nunca havia pensado antes, que nenhum programa de TV algum dia mostrou; o estranho estava ao meu lado e disse:
- É tarde! Sua hora chegou.
A gente sempre ouve isso das pessoas: "chegou a hora de fulano", mas ouvir de uma pessoa morta que a sua hora chegou...isso era incrivelmente desconcertante, paralisante, apavorante!
Caí no choro, sabia que estava realmente morta! Mas ainda não conseguia entender; eu era jovem, me achava inteligente e até bonita; tinha amigos legais, filhos, namorado, gostava de aventuras, andar no mato e tomar banho de chuva, tinha muitos planos ainda para realizar, a viagem para a Europa que eu nunca fiz, também nunca mais poderá ser feita; e a minha caminhada pelos vales do Chile...não acredito em tamanha crueldade, se ao menos eu estivesse com uns 95 anos, tendo feito muitas e muitas coisas na vida, mas não, eu ainda queria fazer milhões de coisas, ainda não tinha corrido nua na neve de Bariloche; nossa...queria ter comprado um livro semana passada, não comprei para não gastar e agora...não poderei comprá-lo jamais, devia ter gastado minha poupança com alguma coisa legal, que me marcasse agora depois de morta, só juntei e priu...morri.
Nesse momento vejo que estão mexendo nas minhas coisas, lendo meus escritos...ainda tento argumentar:
- Ei, ei, não mexe aí não!
Inútil, ninguém me escuta. A pior parte foi ouvir a divisão dos meus livros, mas isso eu já tinha deixado articulado antes da minha morte, alguns iam para as amigas mais chegadas, outros para as minhas filhas e todo o restante para uma biblioteca pública. A minha irmã estava mexendo nas minhas roupas, hum...ouvi que iam doar absolutamente tudo, está certo, só o vestido verde novo que eu queria usar no velório, ele me deixa bem, tipo Marylin Monroe...nem tanto, mas me deixa charmosa, e já que não tem jeito para essa certeza inexrorável, que eu vá em grande estilo, devia ter deixado isso registrado, além de querer ir maquiada, espero que tenham o bom senso de não me deixarem no velório sendo vista por várias pessoas, totalmente pálida, isso seria imperdoável, imperdoável.
Já estava até mais conformada, minha preocupação agora era: Para onde essa figura do shopping irá me levar?
Ficava pensando no inferno sartriano, aquilo era terrível, prefiro queimar a bunda! Sendo inevitável, fui falar com a figura estranha.
- E aí companheiro? Qual o destino, ou seja, lá o que se diga depois do passamento?
- Não se preocupe, siga-me!
- Muito fácil..."siga-me". Você é um cara realmente engraçado, vem aqui, me mata, me segue e ainda me manda te seguir. E por falar nisso, qual a causa morte?
- Parada cardíaca.
- Como assim? Eu não posso ter morrido do coração! Sou jovem demais...
- Mas foi exatamente isso. Lembra quando o médico pediu que relaxasse mais, tirasse umas férias e fizesse compras?
- Claro que lembro.
- Pois bem, deveria ter seguido o conselho, seu estresse te matou.
- Quer saber? Cale a boca e vamos andando, seja lá onde for é melhor do que ficar conversando "miolo de pote" com um morto.

FIM

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